30 de outubro de 2009

Lapidada por Estilhaços



Lapidada por Estilhaços

Poderia lançar-te à rua como o Ourives Parnasiano,
Esculpida com lentas salivas... perfumada para o prelo...
Ou envitrinar-te pálida como el viejo vaso grego...

Mas ponho-te imediata, urgente e sem segredo, em desespero...
Vestida ainda em placentas, nas ruas vais nua em pelos...
Sem cesárea ou banheira, nasceste assim pela terra, escorrendo pelo bueiro...
Na pressa de quem tem sede ou na fome de um mundo inteiro...

Como uma marcha revolta...
Filha do homem, sem tempo para ter medo...
Avança o meu poema como uma turba confusa e concisa...

Poderias ser como a musa num museu estatuada...
Ou no Louvre emparedada como a Lisa...
No entanto, és medusa rabiscada... És a mona primitiva e obtusa!

És semente plantada, quase escondida... fecundando milhões de hectares...
Ser bruta matéria-prima florida... e repartida...
Como a prole que se multiplica... Incêndio que se propaga...

Poderia domesticar-te ate saíres perfeita, saltitando por avenidas, abotoada...
Nas valsas ver-te rodar como palpitante estrela... Serenata serena...
Mas sei que nasceste em silencio, ao aborto, sobrevivida... Sirenes ligadas vermelhas...
Assim vai meu poema... pelas veredas...

Poderia ter-te em pérolas adornadas, em prêmios embevecida...
Mas seus nervos foram forjados em fábrica, por mãos operárias parida...
Suas paredes são mãos calejadas, pedra a pedra por pedreiros...
Assim vai meu poema... pelos sendeiros...

Poderia ver-te casada na igreja,
no altar como deusa, com homem de boa família...
Mas o sangue estivador tem a dose exata de suor, boa dose de licor...
E sabem colher com suas mãos, a carne das ruas salgadas...
Assim vai meu poema... pelas estradas...

Poderia sim, entoar versos idílicos dos antigos menestréis feudais...
Com liras afinadíssimas e seus baluartes bacantes, seus bandolins enfeitiçados...
Tocando flauta pelos paramos, poderia travestir-te de cordeiro e espalhar a boa nova de seu parto... Fantasiar sob o pelego da ovelha...

Mas te projeto como um punho cerrado de raiva...
Do pavio querendo a centelha...
Pronta para enfrentar bombardeios...

Poderia eu, como pai... lapidar-te com detalhes... séculos de pinceladas...
Para ver-te repartir a luz nas sete cores primárias...

Mas sei que és mal acabada, rebentada com navalhas em suas carnes...
Foste entalhada com machado sem fio...
Meio aleijada, retorcidos os joelhos...
Nos muros, podendo ser lida nos becos quando estala a luz do alumínio negro...

Mas te vejo assim, lapidada apenas por estilhaços, granadas, obuses...
Explosão de morteiros... Fogueiras... Tiroteios...
Queimando em brasa seus calcanhares... Isqueiros...
Fumaça de fósforo branco sufocando os ares...
Nossa garganta em chamas procura por água, encontra o lacrimogêneo...
Respira esse pano embebido em vinagre... Sai pela rua desesperada, salva-te... Ligeiro...

Não temos tempo para acabar o poema...

Queimaduras por fósforo branco, bomba proibida como arma pela ONU, mas utilizadas indiscriminadamente contra o povo iraquiano e palestino pelos EUA e Israel.



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