25 de agosto de 2023

Não há beleza no sacrifício humano!

Eu trabalhava no altiplano boliviano... No meio dos obreiros de sangue, quase 100% indígenas, que me contaram alguns segredos particulares. Antes de uma grande construção iniciar, seja um prédio, uma ponte, uma estrada, todos faziam uma cerimônia em que se embebedavam de chicha. O mais velho dos obreiros era o que mais bebia! Quando o velho já não conseguia ficar de pé, o atiravam em um enorme buraco e o enterravam vivo. Os engenheiros, quase todos brancos ou formados por universidades de cultura ocidental, fingiam que não viam o que estava acontecendo, ou melhor, permitiam que acontecesse. Perguntei por que faziam isso. A resposta era: para acalmar a Pachamama! E os engenheiros sabiam que, se o ritual não fosse realizado, a obra não se iniciaria, porque os trabalhadores se recusariam a pisar no local. Mover tamanha quantidade de terra sem oferecer sangue à Mãe Deusa não era aceitável. O velho e sua família sentiam orgulho em ser a oferenda. Enfim, culturas ancestrais, sangue antigo, rituais amalgamados, nada os apaga facilmente. Até que ponto devemos respeitar, condenar, repreender, envolver-nos ou mesmo participar e ser a própria oferenda, UM DIA!

Comecei a analisar essa cultura do sacrifício humano dos antigos povos que realizavam o que consideramos hoje, na nossa sociedade ocidentalizada, uma atrocidade. Imaginar aquelas cabeças rolando em rituais religiosos, sangue sendo bebido, caldeirões... Enfim, cada cultura à sua maneira: Celtas, Maias, Astecas, Gregos, Fenícios, Incas, Vikings, Polinésios, Hindus... Casos da literatura celebram, como Agamenon sacrificou a própria filha Ifigênia para acalmar a Deusa Ártemis. De tudo se sacrificava: escravos, prisioneiros, guerreiros, mulheres, virgens, crianças... E o motivo, em geral, sempre girava em torno de eixos comuns: garantir boas colheitas, acalmar a fúria das estações, prever o futuro (ou prover o futuro), vencer guerras. Os Deuses sempre estavam por trás disso tudo, exigindo sangue humano.

Havia também, e há até hoje, o conceito socialmente aceitável da morte sacrificial na batalha. E não me refiro somente aos kamikazes, mas a qualquer soldado defensor dos interesses da Pátria. Quem morre é considerado um herói condecorado com medalhas, enquanto quem retorna é possivelmente abandonado em um asilo para veteranos e, com o tempo, naturalmente enlouquece.

Quanto mais sangue, mais abundância de benefícios! Quanto mais valiosa a oferenda, mais favores receberá em retorno! Os relatos históricos dos sacrifícios humanos ritualísticos percorrem um caminho paralelo ao surgimento das primeiras sociedades hierárquicas, onde uma elite possuidora de terras, riquezas, exércitos ou tecnologia dominava os conceitos religiosos. Submetendo as classes inferiores a realizar as oferendas, os mais frágeis se sacrificavam em nome da comunidade, demonstrando poder e controle sobre o destino dos membros inferiores. Isso garantia obediência, servidão e a manutenção da ordem social.

No fim das contas, descobrimos que os Deuses não se importavam muito com o derramamento de sangue. Por trás dos Deuses, havia homens, hierarquia, classes.

Lembro-me agora da figura de um homem chamado Lanceloti, talvez o homem que mais detestei na vida... Ele era o chefe do meu pai! Esse tal Lanceloti roubava meu pai de mim todos os dias. Lanceloti chamava, meu pai obedecia, subordinava-se... 8, 10, 12, 14, 16 horas por dia... trabalhando à noite, acordado, drogado! Meu pai chegava em casa destruído, sem energia sequer para dar um boa noite arrastado. Ele desabava na cama e se preparava para a batalha do ganha-pão do dia seguinte. Minha mãe sussurrava: "Deixe seu pai descansar, ele tem se sacrificado muito pela família." Esse camarada sustentou os quatro filhos, nos vestiu, educou e, no fim, como um boi de carga, foi para seu matadouro particular. Deprimido, suicidou-se com um tiro no peito.

Hoje, os Deuses têm outras características, um pouco mais mundanas. Eles estão nas prateleiras, vitrines, telas, produtos, nos bancos... Curvamo-nos ao Deus Mercado... e tudo é mercadoria... Sacrificamos um ou dois membros da família para que o restante seja beneficiado. Sacrificamos até crianças, trancando-as em cursos preparatórios para serem as próximas oferendas. Os idosos retornam do seu descanso para complementar suas rendas. As virgens se oferecem como prendas leiloadas.

Desenvolvi um ódio natural pela figura do patrão. Meu ato heróico na juventude foi rebelar-me contra qualquer sistema de exploração humana, contra o sistema, contra a fragmentação da minha família, contra a ordem de subordinação de um homem pelo outro. Pela liberdade, igualdade, fraternidade! Me coloquei na vanguarda dos exércitos informais da classe trabalhadora... que não têm retaguarda nem hospital de campanha... Acabei derrotado em minhas aventuras, destruído e meio aleijado. Tive que reconstruir-me como homem.

Se eu fosse um desiludido, diria hoje: - Pois é, cresci! E tudo não passou de um sonho de juventude. Mas, digo apenas: - Cresci! Casei, tive meus filhos... e me vi sendo o espelho daquele meu pai boi de carga. Afundado na lama do salário mensal, das contas a pagar, dando comida, roupas, educação... repetindo o ciclo vicioso da classe trabalhadora despossuída. Digo com certo orgulho para meus filhos: Seu pai está se sacrificando para dar o melhor a vocês... Ao mesmo tempo, percebo em seus olhos que eles queriam o papai.

A sociedade ao meu redor me condecora, engrandece, enobrece. Isso me faz pensar que estou fazendo o correto. Com dureza, forjada nas minhas 12 horas de trabalho, sem energia para dançar quando chego em casa, incapaz de me contagiar com a alegria e o amor exuberante que emanam das minhas crianças... Ao lado, vejo minha esposa descabelada, caída em um sofá desbotado, chegando de seu turno... Agora é o pai e a mãe que trabalham... Mas lembrem... quanto maior o sacrifício, mais rápido será o sucesso! Quanto mais sangue, suor, quanto mais longa a jornada... maior a colheita, a receita, a bonança! Essa é a promessa, o plano infalível!

Atualmente, trabalho com um grupo de imigrantes mexicanos, antigos Astecas e Maias, que vêm para o Canadá para uma temporada de 8 meses por ano. Trabalham 12 horas por dia, no mínimo 6 dias por semana, por um salário mínimo! (ainda vou escrever um livro sobre isso). Esse povo realiza um sacrifício generacional, deixando seus filhos, mulheres, famílias, culturas... para enviar dinheiro mensalmente e sustentar os que ficaram. Eu me mato, eles se matam, e preparamos nossos filhos para que um dia também se sacrifiquem!

Não sei onde isso vai acabar, confesso. Não acho bonito, embora saiba que a sociedade aceita isso como um ritual a ser valorizado. E eu, como aquele velho indígena bêbado da Bolívia, vou contente me tornar a oferenda para que a obra dos meus companheiros, enfim, seja bem-sucedida. (tenho minhas dúvidas)


12 de agosto de 2023

Navega na vaga meu vesgo!

Navega, menino, navega!
Assim que partires do porto,
Medroso, matreiro, às cegas...
Num reverso de um aborto
Erguerão-te ao vento as vergas.

Nas eras que se virão
Por vezes encontrarás feras.
As heras desse verão
Ou talvez da primavera
Amanhecerão caravelas.
(Futuro que te espera)

Navega rapaz em seu mar!
Só vai... Em busca de teu arrebol
Alfarrábio, astrolábio, Si bemol...
Naufraga rapaz, não faz mal!

Virá o tempo do sal
em seus olhos, em seu lar!
Naufraga rapaz, há mais ilhas
Que são filhas de seu remar
E o suor nas escotilhas.
(Naufrágios não são tragédias.)

Afoga meu homem, afagas!
Nemo se ausenta! Te solta das rédeas!
Um murro nos mares, adaga nas vagas...
Nadar é contracorrente!
Te solte as amarras!

Teseu larga as peças do barco
Boiando no rastro de espuma,
para que o reconstrua.
Maria migalhas espalha
Na trilha que descontinua...
Perdido amigo... agora gargalha!

Meu lobo, meu lábio! Estou louco?
O lóbulo frontal se confunde
no pouco de força que afunda...
Ao fundo um velho responde:
- Insufle as velas, se zarpe!

Descansa meu velho
Menino jogado ao mar.
Jangada bem frágil, 
Quase uma casca de noz.
Descansa no vento de duzentos nós.
O ciclone é suave... A nave navega em paz.

Descansa meu velho
Rapaz que comeu cogumelos
Com fome de sonhos,
De sagas. Deformas o cerebelo.
Descansa carinho, o mar também é menino!

Desarma das velas meu homem marujo!
Marmanjo, barbado, beiçudo!
Faz rezas pro anjo da guarda... 
Às lendas de antigas esquadras,
Desista do mapa, corsário! Estrelas já vê amarelas!

Meu velho! Amigo, irmão, companheiro...
Acabou o dinheiro, o gás, o martírio!
Descanse os olhos tranquilo, 
Seu sonhos eternos de certo, não serão delírios...

Navega meu filho, navegas nas vagas, nas folhas!
Há falhas, falésias, navalhas, vai vesgo no visgo da lesma.
Osíris, Oxóssi, osmoses de Deuses.
O Sol será sempre a estrela... 
Seu pai guiará no caminho!

11 de agosto de 2023

Alquimia

 Eu aceno meu chapéu para os vizinhos...

Sou bem vindo em meu ranchinho, isso eu percebo!

Quando estou em meu lugar, me apaixono por mim mesmo!

 

Depois da cortina dos pinheiros, seu olhar já não me alcança...

Ali deito e me descanso... Eu e minha companheira!

Ninguém sabe o que se passa em minha horta...

 

E das horas que eu passo espantando mil insetos

E da terra que me cobre por inteiro no semeio

Nada sabe da sujeira que eu faço no terreiro

Da fumaça de neblina que atrapalha meu cavalo

Das minhocas que sussurram com os grilos

E dos gritos de meu gatos em seus cios

E dos cílios do regato que protegem minha água

 

Ninguem vê, ninguém toca, nem o sente...
A bagunça, o trabalho, a sujeira, a desordem e o encanto...

O que trago aqui pra fora, é apenas o alimento dessa mágica anterior.

Retorno

Eu retorno bem cansado pro meu reino,

Na verdade, destruído, detonado, combalido...

Mas retorno desse jeito pro castelo

Bem sem pompa, na verdade é meu rancho!

 

Eu retorno desses anos de trabalho no navio

Lá nos remos das galés do Deus romano

Caravelas portuguesas dos escravos

 

Eu escrevo mais um verso escondido

Deixo ali, ele bem quieto matutando seu segredo

Cubro em palhas as ideias nas lavouras do engenho

E retorno bem mais velho, bem mais calvo

 

A princesa não tem torre, nem tem trono... é camponesa

Que trabalha com as vacas e o centeio...

De qualquer modo, me recebe num abraço bem mais terno 

Que um incêndio!

Like Adam training dogs in paradise

 They are gypsies, they are artists, clandestine,

They are wanderers, acrobats, dancers so fine. Vagabonds, bandits, northerners in line, Minstrels, buccaneers, living libertine.

Immigrants, Tuaregs, and Bedouins too, Barbarity! - Like birds, they sing their tune. Ancestral swallows, they roam as they swoon! Collectors, hunters, indigenous crew. Otavalos, craftsmen, off the beaten path strewn!

Foreigners, strangers, and pilgrims in quest, From these tribes of turbans, they make their bequest, Pirates, and beggars, no shelter, no rest.

Sons of the desert, of doom, of fate, Banished, refugees, running from hate, Hunger their foe, pursued by the plague, Born from the war, catastrophes' mate.

In the Aegean, Afghans drown without sight, Syrians assaulted in Turkey's moonlight. Persecuted Palestinians like Jews in '39, Old Yugoslavs scattered through space and time. Zapotecas from Oaxaca, '94 on their plate. Colorful crossings through Colorados' gate, Louisiana blacks facing anger and hate!

Those who pass through, who do not remain, Flying like kites in a cyclone's fierce reign, Spreading like spores, a diaspora's refrain, Like smoke in the wind, they replicate pain, Wandering o'er pastures, with thoughts on the wane!


All... all of these who knock on my door today, Beating with their hooves on my land's display, Springing up like winter's flowers in array, Like spores in diaspora, like purges that sway, A chaos, a turmoil that doesn't decay...

They disrupt my peaceful London's sway, Annoy the boundaries of my postmodern bay! Like Huns encircling my slumbering Rome's way!

I hammer one more nail into the stake, Build thicker fences, my rifle I take, I protect the Parthenon for my offspring's sake, Dig deeper trenches, like abysses they make, Raise walls, open ditches, with bullets at stake.

In my Eden, I purify my skin's plight, My genome preserved in a console's light, Like Mickey defending his castle's height, Rapunzel cutting strands in her refuge's site...

I laugh, I'm the white man who's laughing bold, The arm that humiliates, so cold! Rubbing my genitals on the blister, behold, This hideous Lazarus, toiling and old.

Like Adam training dogs in paradise's flight, Preserving the good life in my tomb's sight, A well-fed Minotaur in labyrinth's night, Watching with pride the suicide's might, Of this human part that's part of my sight.

A STROLL IN THE PARK

Today I had an ice cream, no topping did it bear,

Then I read a poem, no rhyme found in the air. I walked across the park, where no plants grew with flair, Everything was tranquil. Children? No, none were there!

I carried on my lackluster stroll, oh what a day! As soon as I reached home, no key, it's safe to say. I called my love to the window, no shout in any way, I kissed their lips so gently, no need for words to sway.

I dined on a stored sandwich, made of rye so fine, Had that chilly beverage, no alcohol in the line. Turned the TV to the news, where truth's hard to define, Living in a world of censorship, a constraint so malign.

I slept a night without dreams, while sitting all alone, Awakened with a sixth sense, a feeling like a drone, I see a man in the mirror, a soul that's not his own. (Sensible tone)

... I lay down in silence, she appears by my side, so slim, Quietly beckons me to dance, and I, on a whim, ...

Today I had an ice cream: pure delight! Then I read a poem: such a beautiful sight! I walked across the park: fragrances take flight! Everything was lively. Children? In countless light!

I continued my leisurely stroll, a wonderful day anew, Upon arriving at the castle, birds in the sky they drew, They called out my name: "Marcelo," they cooed, I kissed their lips with fervor, emotions they imbued.

I dined with my princess: candles set the scene, We sipped on robust wine, and olives so serene, Played a bolero on the phonograph, a rhythm so keen, (Censorship's routine)

I slept a night so weightless, sensitivity untold, Neither dream nor nightmare, a rarity to behold, I see a man in the mirror, love's story to be told.

("Love, come to bed," the story now unfolds)

Diana caçando e fazendo janta!

Ela vem... Bem suave vai pousando em minhas pernas!

Se esfrega, se entrega, sua nave estaciona em meu pátio.

Abro as portas... E Diana não precisa derruba-las!

Sinto o cheiro de seu passo que invade meu espaço.

Sinto o pelo de meus braços eriçarem, são as células!


Ela vem... Repousar sobre meu ombro as libélulas.

Cozinhar no forno velho, seus delírios coloridos.

Acender minhas lanternas já sem pilhas, em olvido.

Envolvida nas fumaças ela traz uma carcaça amarela.

Um polvilho.


Ela vem com a cachaça, o torresmo e o baralho.

Vejo as peles desse bicho arrancadas com cuchillos.

É a caça amansada no martelo, bem servida em minha mesa.

A surpresa suculenta em meu cardápio criativo.


Marinada e mergulhada em seus temperos, vão as ervas

Misturar-se ao sangue bruto, quase um coalho!

Eu degusto com a boca, com meu corpo, como tudo!

Lambo os beiços, bebo o suco, fumo e trago!


Os estragos do ciclone são suaves! 


Vem o vento, nunca para...

Ela segue seu caminho, não impeço! 

Num tropeço eu retorno pro meu lago.


Sou um cego centenário em bengalas.

Tempestades vão molhar outros terreiros.

Outros galos vão cantar outros enredos.


Acendo a vela... rezo o terço! Um rosário! Uma novena!

Entra a quaresma.

Ela volta. Um dia ela retorna pro meu colo...

Saltitando, abro as portas pra Diana... Minha Deusa!

Passeio no parque

Hoje tomei um sorvete, sem calda... 
Depois eu li um poema, sem rima.
Caminhei pelo parque, sem plantas.
Estava tudo bem calmo. Crianças? Não, não havia.

Segui no meu passo sem graça! Que dia...
Assim que cheguei em casa, sem chave...
Chamei meu amor na janela, sem grito.
Beijei-lhe na boca de leve, sem língua.

Jantei um sanduba guardado, centeio.
Tomei aquela gelada, sem álcool.
Liguei a TV no jornal. Censura.

Dormi uma noite sem sonho, sentado.
Desperto com Sexto sentido... Que chato
Percebo um homem no espelho. Sensato. (sem alma) 

...
Deitei-me quieto e cansado... 
ela aparece ao meu lado, esguia!
Calada, me chama pra dança, me guia. Eu bailo!
...

Hoje tomei um sorvete: Delícia!
Depois eu li um poema: Que lindo!
Caminhei pelo parque: Aromas!
Estava tudo animado. Crianças? Milhares!

Segui meu passeio sem pressa! Que dia!
Assim que cheguei ao castelo, as aves
Chamaram meu nome: Marcelo!
Beijei-lhe apertado na boca. Salivas!

Jantei com a minha princesa: À velas!
Bebemos um vinho encorpado e olivas!
Bem ébrio, liguei na vitrola um bolero: Censura!

Dormi uma noite sem peso, sensível!
Nem sonho nem pesadelo. Que raro!
Percebo um homem no espelho, Que ama. 

(Amor, venha pra cama!)