O Capacete Imaginário
- Um conto verídico - [1]
Bueno! Foi no ano de 2002 e quase desejo escrever essa historia em espanhol, já que há cinco meses estava eu viajando e trabalhando por
Nuestra América,
La Morena. Contava eu com 25 anos de pleno vigor juvenil e convicções nos sonhos e revoluções.
Meu cansaço já me consumia ao esgotamento, saíra do Brasil com cinqüenta reais apenas, o suficiente para que, mesmo economizando, ser gasto no segundo dia de viagem, e agora, encontrava-me frente às últimas linhas de minhas defesas mentais e psicológicas.
O trabalho não era simples. Percorrer os países americanos articulando a luta do movimento estudantil à linda luta dos camponeses e trabalhadores, unindo universidade e realidade...
Já cumprira quase a totalidade da meta, fazendo um bom trabalho na Argentina, Paraguai, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela, e agora retornava à terras do Mestre Garcia Marquez para atravessá-la rumo ao Panamá. Meta: chegar à Guatemala em Janeiro de 2003, para repassar a Coordenação Geral da CONCLAEA[2] no CLACEEA[3] a ser realizado no país
Quetzalli...
Meu último ponto de paz e boa comida havia sido em Maracay (ainda na Venezuela), recebido gentilmente por meu amigo Jesus Manuel e sua incrível família, abençoado por sinceras orações de sua
hermosísima madre, que me ungia com lágrimas de seus olhos quase cegos.
Viajando há mais de 10 dias, com nada de grana e pedindo pouso e comida aos bons moreno-americanos que ainda sabem receber um peregrino e sempre dispostos a comungar histórias e dificuldades.
Atravessei por Maracaíbo e tinha que seguir cortando o litoral norte da Colômbia até chegar em Turbo, para dali, tentar uma carona de barco até o litoral sul do Panamá. Era mais um ano de contínua guerra civil, onde o novo presidente Álvaro Uribe tomava posse com uma bomba explodindo ao seu lado. A guerrilha marxista já previa um mandato de repressão estúpida e o país sentia o peso da guerra que já duravam 40 anos.
Fui orientado a não falar muito, para não perceberem meu sotaque portunhol, mas a esta altura, acreditava que já falava perfeitamente o idioma local, inclusive acrescentando os acentos de cada localidade... Ilusão minha!
Cheguei à Monteria à tarde, a fome e o sono já eram companheiros constantes de viagem. Pensei que desembarcaria numa rodoviária ou algo parecido, mas percebi que a rua principal também abrigava o serviço de descarregar passageiros. Dei uma breve rodada na cidade para tentar descobrir qual era o trajeto possível para chegar até minha próxima e última parada na Colômbia.
Rodei, rodei como roda um forasteiro, meio em transe, tenso e sob o olhar desconfiado dos locais, peregrinando pelas esquinas e tentando encontrar algo que interessasse, rodei perdido... E nada!
A cidade era pequena. Logo descobri que não haver caminhos tradicionais para Turbo, e que oficialmente eu deveria ir até Medellín para depois seguir para Turbo. Analisei os preços e caminhos, concluindo que a rota de Medellín me faria gastar mais do triplo do dinheiro e tempo... Vasculhando as informações, descobri uma rota semanal pela selva, feita por um velho jipe, que sairia de madrugada e o caminho era bem mais curto, já que talhava pela selva fechada. Como preço e tempo eram determinantes em minha situação, obviamente me decidi pela rota selvagem...
Fui até o bar indicado, onde se negociava o preço da passagem, os horários e locais de saída, sentei na calçada da rua indicada e lá mesmo, esperei o cair da madrugada completa.
Confesso que meu cansaço não permitia questionar-me o porquê do horário incomum, assim como não questionei o local combinado, nem o tipo de jipe, que cargas levavam, muito menos dos perigos... Adormeci na rua, no local combinado e às duas da manhã em ponto, apareceu o jipe velho e barulhento, ainda sem passageiros, mas logo, ao meu lado surge a turba confusa de gente e de carga, que saíram não sei de onde.
Já me acostumara a isso. Para mim, não era novidade ter que disputar meu lugar à cotoveladas e empurrões. Na hora de garantir meu espaço, vem a força destemida e automática. Guardei a bagagem no embolado miolo do jipe, encostei-me à lateral do carro, apertado por muitos corpos que se espremiam, mas eu delirando de sono, nada me incomodava... Evoquei o transe tradicional dos exaustos e apaguei antes mesmo do Jipe começar a andar.
Agora via tudo se passando como num sonho, e confesso que grande parte da viagem, eu estive nesse estado psíquico... Navegando em nuvens. Mas percebi que estava sendo espremido de verdade, por pesos absurdos, elefantes... O balançar do jipe era um navio, e a escuridão interrompida por raios e poucas luzes de camponeses ou guerrilheiros. Às vezes o jipe parava por longas horas na beira de um rio, e me dava conta que estávamos esperando as balsas chegarem. Ao todo atravessamos cerca de cinco rios, e todos quase em silêncio e tensos...
É quase certo que esse era um dos momentos mais perigoso de toda a viagem, mas sempre acreditei que nada de mal me aconteceria e guiado pela vontade extrema de cumprir com essa jornada sobre a terra, seguia assim protegido por todos os caídos em combate... Sentia a chama do “cura” Camilo Torres me iluminando!
Tudo muito tenso, eu com sono, o jipe parado na beira do rio, a balsa que não chega, eu sonhando com o jipe parado e o clima tenso, o jipe embarcando, a balsa chegando, as balsas cruzando, outras paradas... Outros silêncios, outros sonhos, outro lado do rio... E a consciência de que algo se passaria logo. Fogo na mata, soldados em agrupamentos na beira da estrada...
Seguíamos sem saber se eram soldados, guerrilheiros, ou ainda os paramilitares de direita. Minha mochila com exemplares de livros de Che Guevara... Quem pensaria que isso ainda seria condenado e subversivo em terras humanas! Meu cansaço não permitia o medo, gastaria muita energia ficando tenso.
Sei que nesse estado de consciência, eu fui adormecendo e cambaleando, as sacudidas aumentavam à medida que meu sono afundava em si... Acordei com um solavanco mais forte que quase estourou minha têmpora num parafuso que se projetava como um pino na lateral de minha cabeça. Solavancando seguimos, eu e o pino, mas o sono era tanto que a dor só era sentida no sonho... Eu delirava implorando por um capacete, que me protegesse os ossos do crânio, acreditando que resolveria meus problemas.
Minha têmpora, já ferida, doendo, meu sono prejudicado, eu pensando no capacete, desejava-o mais que comida... A cabeça cambaleando, sem força no pescoço, afogado. Imaginava aquele capacete redentor para me salvar a noite e a viagem. A chuva fina!
RRRRRRRRRRHHHHHHHHHFFFFFFFFFF!!!!!!!!!!!!!!!!!!! O carro freia!
Os que cochilavam, despertam! Os acordados saltam!
- Carajos, que pasa hombre!??
O motorista engata a marcha ré. Ilumina com o farol enfraquecido a estrada, todos buscam alguma explicação com o olhar. A principio não percebo nada, já que meu ponto de vista era bloqueado pelas banhas e bagagens alheias... Salta do carro... Não fala nada! Caminha adiante... Agora consegui um espaço para minha vista chegar até o ponto de interesse geral... Vejo o motorista agachar-se para recolher no meio da estrada de terra... Não acreditem, mas era... Ali...
Um capacete!!!
Não era daqueles capacetes de soldado, nem de operário... mas um desses de motoqueiro antigo, tipo
easy rider, hell’s angels, só o casco de cima, sem visor nem nada, mas em perfeito estado, um capacete de um vermelho vinho brilhante, inimaginável! Contanto que todos questionavam-se: o que fazia ali? Como? De quem? De onde?
Não importa, nunca saberemos. A inútil tentativa de especular... Sei que o motorista retornou com o troféu nas mãos... Não havia dúvida, era meu o capacete imaginário, de quem o sonhara... Obviamente lhe pedi serenamente para que me devolvesse o que me pertencia por direito onírico.
Eu, o jovem marxista, materialista histórico dialético, não me preocupei com a explicação, não necessitava dela para dormir...
Recebi o capacete, encaixei-o com perfeição à minha cabeça, e encostei com força e segurança no parafuso-pino que me atormentava a têmpora e o sono. Adormeci como um anjo!
Acordei com meu prêmio, feliz e sem pensar no “como”. Pedi para subir no teto do jeep, e continuei a viagem junto a muitos camponeses, cargas, galinhas e guerrilheiros que se amontoavam como naqueles vagões africanos.
Eu no meio, o vento na face, a poeira, a selva... Os pelotões em má formação e fome se espalhando por uma guerra que perdura sem vencedores.
Cheguei a meu destino final! Turbo me aguardava sem ninguém a me esperar... Os negros carregavam sacos grotescos aos barcos ancorados.
Baixei a bagagem no porto, e quando fui agradecer ao motorista pelo empréstimo, disse-me que o capacete era meu:
- un regalito de um pueblo bueno! Agradeci e amarrei meu prêmio na ultima corda que restava livre em minha mochila.
Inevitavelmente retornei ao Brasil, ao velho quarto hippie revolucionário, 106 do Brejão da UFLA[4], em uma de suas paredes, preguei o capacete como símbolo de uma era espetacular!
Um dia passou por ali, dois jovens de um grupo de teatro escolar, que pediam roupas ou coisas velhas que pudessem ser utilizadas no cenário ou figurino.
Eu parei para escutá-los. Estava feliz! Retirei o capacete do prego da parede, para dar-lhe vida em outros palcos fantásticos da interpretação da vida, mas antes disso, convidei-lhes a sentar, tomar um café, queijo e à boa prosa mineira... E ouvirem essa pequena fábula do capacete imaginário!
FIM
[1] Todos os acontecimentos narrados aqui são reais, o capacete existiu de verdade! Quem viveu a aventura, foi o narrador da história!
[2] CONCLAEA: Confederação Caribenha e Latino Americana dos Estudantes de Agronomia, organização histórica de caráter gremial e política dos estudantes de Agronomia.
[3] CLACEEA: Congresso da CONCLAEA, realizado a cada ano num país diferente, ocorre junto a um Estagio de Vivencia junto aos camponeses e indígenas locais.
[4] Universidade Federal de Lavras e seu histórico alojamento Brejão!
Com a ajuda especial da correção de alguns amigos especiais demais... Grazi, Dani, Luciana, Irma Gessi, Paula, Gi, Madre...